O conto da Cinderela e a preservação do clássico no live action da Disney
O arquétipo como receita do sucesso
Há a lição de "Cinderela", que é a mesma do Magnificat — EXALTAVIT IIUMILES.
G. K. Chesterton, Ortodoxia.
Desde cedo, meninas de todas as partes do mundo são tocadas por uma figura que habita tanto os contos quanto os sonhos: a princesa. Com sua beleza etérea, graça inata e uma aura de encantamento, ela não é apenas um personagem, é um arquétipo que habita o imaginário infantil com a força de um símbolo ancestral. A princesa é, para muitas meninas, a primeira metáfora da possibilidade: possibilidade de ser vista, ouvida, amada e, sobretudo, de transformar o mundo à sua volta com sensibilidade e coragem. Sua imagem resplandece como um espelho em que a infância se reconhece e fantasia, em que o desejo de pertencimento e de aventura se encontram sob os véus da delicadeza e da bravura.
É nesse contexto simbólico que o live action da Cinderela (2015), produzido pela Disney e dirigido por Kenneth Branagh, surgiu há alguns anos não apenas como entretenimento, mas como a encarnação moderna de um arquétipo atemporal. Ao unir a força visual do cinema contemporâneo com a essência mítica do conto original, o filme oferece mais do que uma narrativa, ele propõe uma jornada iniciática. Cinderela, com sua doçura resistente e sua fé inabalável na bondade, não é uma simples heroína: ela é o retrato da alma feminina em sua travessia do sofrimento à luz, do anonimato ao reconhecimento, uma verdadeira princesa. Em tempos em que algumas produções optam por desconstruir ou até desfigurar esse arquétipo em nome de uma modernidade woke, esquecendo-se do poder simbólico que ele carrega, a Cinderela em live action da Disney se destaca justamente por preservar a profundidade emocional e arquetípica que moldou o imaginário de tantas gerações. Nesse sentido, o filme se revela não apenas como uma releitura, mas como uma afirmação daquilo que a figura da princesa representa: a beleza que persiste, a esperança que renasce e o poder da gentileza em um mundo por vezes cruel.
“Tenha coragem e seja gentil, Ella”
Desde os primeiros minutos, somos convidados a adentrar a infância de Ella, ainda sem o prefixo “Cinder”, em um lar no qual o amor e o afeto são os pilares da formação do seu caráter. É da mãe que ela herda a lição que se tornará seu eixo moral da história: “tenha coragem e seja gentil”. Essa frase, simples à primeira vista, revela-se uma chave de leitura profunda para todo o filme, pois é justamente a coragem silenciosa e a gentileza insistente que a manterão íntegra diante das maiores adversidades
A princesa é aquela que sofre
Com a morte da mãe e posteriormente do pai, além da chegada da madrasta e das irmãs postiças, o mundo de Ella se torna um cenário sombrio, quase uma descida simbólica ao submundo da rejeição e do esquecimento. Essa ruptura do lar, que antes era sagrado, é o primeiro grande momento da travessia. A casa que antes era abrigo se transforma em prisão, e o nome “Cinderela” (borralheira, como no sentido da lingua inglesa) que lhe é imposto como zombaria, funciona como marca de exclusão. Mas é aqui que a figura da princesa brilha: em vez de ceder ao rancor ou à vitimização, ela permanece fiel aos ensinamentos da infância, sustentando sua dignidade mesmo coberta de cinzas.
O encontro com o príncipe
O primeiro encontro entre Cinderela e o príncipe, ainda na floresta, acontece longe dos salões, dos protocolos e dos disfarces sociais, e justamente por isso, revela sua potência. Não há vestidos deslumbrantes nem coroas reluzentes; há apenas o acaso que aproxima, e a verdade que reconhece. Ali, despidos de qualquer artifício, são duas presenças autênticas que se encontram. O príncipe não vê em Cinderela uma personagem idealizada, mas sente nela algo raro: uma inteireza tranquila, uma luz discreta que não precisa de ornamentos para brilhar. Esse instante simboliza mais do que uma atração, é a manifestação arquetípica do encontro entre princípios complementares. O masculino solar, nobre em sua busca, encontra o feminino lunar, radiante em sua quietude. É o tipo de encontro que não se explica pela lógica, mas que ressoa no inconsciente como algo inevitável: o reconhecimento silencioso de duas almas que, mesmo sem saber nomes, já se pertencem de algum modo.
O baile e a fada madrinha
Às vésperas do baile, quando tudo parece finalmente conspirar a favor de Cinderela, acontece uma das cenas mais dolorosas e simbólicas de todo o filme Cinderela. Vestindo um traje que ela própria adaptou com carinho e memória de sua mãe, vê seus esforços e esperanças despedaçados pelas mãos cruéis da madrasta e das irmãs. O vestido, carregado de afeto e ressignificado como ponte entre sua história e seu sonho, é rasgado não apenas em tecido, mas em significado. Aquilo que seria sua passagem para um novo mundo é destruído diante de seus olhos, num gesto brutal que simboliza o esmagamento da individualidade, da beleza interior, da possibilidade. Esse é o momento da queda, o fundo do poço, o instante de maior vulnerabilidade.
Mas é justamente nesse limiar, em que o desespero parece absoluto, que a mágica acontece. Quando Cinderela, sozinha e em lágrimas no jardim, acredita que tudo acabou, surge a fada madrinha. Não por acaso. A ajudadora arquetípica não aparece quando a jornada ainda pode ser evitada, ela surge quando não há mais saídas visíveis, quando o coração provou sua nobreza mesmo diante da humilhação. O surgimento da fada é o ponto de inflexão. Ela representa a resposta do universo ao espírito que se recusa a se corromper. Mais que um toque de varinha, ela é a materialização da esperança que resiste.
Nesse momento de pura magia, que não é gratuita, mas merecida, o vestido ressurge como símbolo de reinvenção: não mais uma adaptação do passado, mas uma criação nova, luminosa, que traduz o valor que Cinderela carrega por dentro. A carruagem, os sapatos, o brilho, tudo é expressão exterior de uma verdade interior. E assim, o que parecia ser o fim torna-se o portal de entrada para a realização do destino. O que era dor, transforma-se em passagem.
Essa cena é, em sua essência, um ritual de transformação. Cinderela morre simbolicamente naquele jardim, e renasce como aquilo que sempre foi por dentro, mas que o mundo ainda não reconhecia, uma princesa. A fada madrinha não apenas concede, ela revela. E Cinderela, enfim, caminha rumo ao baile não como uma sonhadora, mas como alguém que, ao enfrentar o vazio, encontrou sua luz.
O sapatinho de cristal
No baile, o tempo parece suspenso. Quando Cinderela entra, envolta em luz e mistério, não é apenas uma jovem de vestido encantado, é a manifestação do feminino em sua plenitude. O príncipe, ao vê-la, não reconhece uma figura adornada, mas reencontra aquela presença que já havia tocado sua alma na floresta. Eles dançam como se o mundo ao redor desaparecesse, num gesto coreografado pelo destino. E quando Cinderela parte, deixando para trás o sapatinho de cristal, ela não deixa apenas uma pista, ela sela uma promessa. O sapato, delicado e único, torna-se símbolo da singularidade do amor verdadeiro: aquilo que só se encaixa onde há verdade, essência e reconhecimento.
O sapatinho de cristal, assim, agora relíquia mágica, torna-se o único elo entre ele e a jovem que lhe tocou o coração. Mas mais do que um artifício narrativo, essa procura simboliza a fidelidade à verdade interior: ele não busca qualquer mulher, mas aquela cuja presença ressoou em sua alma. A busca é também um teste, da perseverança, da pureza do desejo, da capacidade de enxergar além das aparências. E quando, finalmente, o sapato calça perfeitamente no pé de Cinderela, a verdade se revela: não se trata de sorte, mas de destino. Ela não foi escolhida por um acaso, ela é a escolhida, porque permaneceu fiel a si mesma até o fim.
A princesa é aquela que perdoa
Entre todas as cenas de do filme, talvez a mais comovente e poderosa seja também a mais silenciosa: o momento em que, já reconhecida como princesa e prestes a partir, ela olha nos olhos da madrasta e diz, com firmeza e serenidade — “Eu te perdoo.”
Não há música triunfal, nem efeitos mágicos. Só a força desarmante da bondade verdadeira. Nesse gesto, Cinderela mostra que sua grandeza não está no vestido, no título ou no amor do príncipe, mas na escolha de não se tornar igual àqueles que a feriram. O perdão, aqui, não é submissão, é libertação. É a prova final de que sua luz interior não foi corrompida. E é nesse instante, sem faíscas ou encantamentos, que ela se torna verdadeiramente real, e, paradoxalmente, mais mágica do que nunca.
O felizes para sempre da princesa
O final de Cinderela é mais do que a realização de um conto, é a coroação de uma jornada de alma. O casamento, com toda sua beleza e solenidade, não é apenas a união de dois corações enamorados, mas o símbolo da harmonia entre o mundo interior e o mundo exterior. Cinderela não chega ao altar por ter sido salva, mas por ter se mantido fiel a quem era, mesmo quando tudo ao redor tentou apagá-la.
O “felizes para sempre” não é um clichê romântico, mas a recompensa de uma personagem que escolheu, em cada etapa, a luz em vez da sombra, a gentileza em vez da vingança, a coragem em vez do medo. Ao sair do palácio com o príncipe, ela não abandona o passado, ela o ressignifica. E é nesse gesto, sereno e vitorioso, que o conto de fadas se transforma em mito: uma história sobre amor, sim, mas, acima de tudo, sobre integridade, compaixão e a beleza de permanecer inteiro em um mundo que tantas vezes tenta nos dividir.
Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas.
— C. S. Lewis
Se no imaginário masculino o herói é quem vence batalhas e conquista reinos, no universo feminino é a princesa quem inspira, não pela força bruta, mas pela força de permanecer doce em um mundo áspero.
A princesa é o ideal simbólico da mulher que enfrenta perdas, humilhações, silêncios... e ainda assim escolhe a luz. Ela não espera ser salva, ela resiste, floresce, transforma.
Porque ser princesa, no fim das contas, não é sobre aparência, é sobre ser. E o live action da Disney soube representar isso muito bem.
Obrigada por ter lido até aqui.
Até breve!
Olá, Beatriz! Tudo bem? Venho acompanhando seus escritos e gostaria de dizer que os considero ímpares! Não sei se você conhece, mas gostaria de indicar para você o contato do Prof. Lucas Fonseca, um ótimo classicista e formador de professores. O conhece?
Que texto maravilhoso! Amei esse filme quando assisti, mas lembro que não foi tão aclamado na época. Agora, com a decepção com a adaptação da Branca de Neve, parece que as pessoas estão voltando a valorizá-lo e percebendo o valor das representações mais femininas das princesas.