Certa vez Jorge Luis Borges disse:
“Heitor é o mais humano dos heróis”.
Heitor também é o herói que me recorda a beleza, a utilidade e a humanidade que florescem na literatura grega, pagã em essência, mas eternamente tocante.
Na Ilíada, vemos o herói troiano se apresentar como um modelo completo de herói virtuoso, em contraste marcante com figuras como Aquiles, seu principal rival. Embora não seja o mais poderoso em combate, é em Heitor que Homero encarna de forma mais coerente o ideal arcaico de excelência heroica, a areté, vinculada não apenas à força física, mas à coragem, senso de dever, e fidelidade à polis e à oîkos.
Sua grandeza reside na integração harmoniosa entre os papéis de guerreiro, filho, esposo, pai e defensor da cidade. Ao contrário de Aquiles, cuja honra está centrada na glória individual (kléos), Heitor é movido pela responsabilidade coletiva, na luta por Troia, por seu povo, por sua família e o faz mesmo consciente da derrota iminente. Essa dimensão trágica o torna ainda mais nobre pois Heitor sabe que a cidade cairá, mas não se permite recuar. Seu heroísmo é atravessado por uma ética da resistência e da dignidade diante do destino.
Em seu diálogo com Andrômaca (Canto VI), em uma das cenas mais comoventes da obra homérica, Heitor revela uma consciência dolorosa da destruição que paira sobre Troia e sobre os seus. A cena, marcada pela ternura e pela tensão entre o privado e o público, mostra um herói dividido entre o amor à esposa e ao filho Astianax, e a obrigação de permanecer no campo de batalha. Ele reconhece o sofrimento que a guerra impõe às mulheres e às crianças, antevê a escravidão de Andrômaca, e ainda assim escolhe a honra guerreira. Esse momento concentra o dilema ético do herói virtuoso pois Heitor encarna a fidelidade aos valores heroicos mesmo que isso implique a perda de tudo que ama. Não há aqui a arrogância impetuosa de Aquiles, mas uma firmeza serena que aproxima Heitor de uma figura quase estoica avant la lettre.
Ela veio ao seu encontro, e com ela vinha a criada
segurando ao colo o brando menino tão pequeno,
filho amado de Heitor, semelhante a uma linda estrela,
a quem Heitor chamava Escamândrio, embora os outros
lhe chamassem Astíanax; pois só Heitor era baluarte de Ílion.
Sorriu Heitor, olhando em silêncio para o seu filho.
Mas Andrômaca aproximou-se dele com lágrimas nos olhos
e, acariciando-o com a mão, chamou-lhe pelo nome:
“Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará!
Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim,
desafortunada, que depressa serei a tua viúva.
Pois rapidamente todos os Aqueus se lançarão contra ti
e te matarão. Mas para mim seria melhor descer para debaixo
da terra, se de ti ficar privada. Nunca para mim haverá
outra consolação, quando tu encontrares o teu destino,
mas só sofrimentos.
(…)
Mas agora compadece-te e fica aqui na muralha,
para não fazeres órfão o teu filho e viúva a tua mulher.
Quanto à hoste, posiciona-a perto da oliveira brava,
donde a cidade pode ser melhor escalada e a muralha está
exposta ao assalto. Já três vezes naquele sítio os mais valentes
experimentaram o assalto, na companhia dos dois Ajantes,
do glorioso Idomene e dos Atridas e do valoroso filho de Tideu.
Será porque um bom conhecedor de auspícios os avisou,
ou porque o próprio espírito os incitou e impeliu a fazê-los.”
A ela respondeu em seguida o alto Heitor do elmo faiscante:
“Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me
envergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos,
se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.
Nem meu coração a tal consentiria, pois aprendi a ser sempre
corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos,
esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.
Pois isto eu bem sei no espírito e no coração:
virá o dia em que será destruída a sacra Ílion,
assim como Príamo e o povo de Príamo da lança de freixo.
Mas não é tanto o sofrimento futuro dos Troianos que me importa,
nem da própria Hécuba, nem do rei Príamo,
nem dos meus irmãos, que muitos e valentes tombarão
na poeira devido à violência de homens inimigos –
muito mais me importa o teu sofrimento, quando em lágrimas
fores levada por um dos Aqueus vestidos de bronze,
privada da liberdade que vives no dia a dia:
em Argos tecerás ao tear, às ordens de outra mulher;
ou então, contrariada, levarás água da Messeida ou da Hipereia,
pois uma forte necessidade terá se abatido sobre ti.
E alguém assim falará, ao ver as tuas lágrimas:
‘Esta é a mulher de Heitor, que dos Troianos domadores de cavalos
era o melhor guerreiro, quando se combatia em torno de Ílion.’
Assim falará alguém. E a ti sobrevirá outra vez uma dor renovada,
pela falta que te fará um marido como eu para afastar a escravatura.
Mas que a terra amontoada em cima do meu cadáver me esconda,
antes que ouça os teus gritos quando te arrastarem para o cativeiro.”
(tradução de Frederico Lourenço (Penguin/Companhia das Letras, 2017)
O humano enfrenta o semi-deus
Ao enfrentar Aquiles no duelo final (Canto XXII), Heitor novamente evidencia a densidade de seu caráter. Embora abandonado pelos deuses e traído por sua sorte, recusa-se a morrer sem resistência.
Antes de se decidir a enfrentá‑lo, Heitor passou por um momento de hesitação que revela sua ambivalência entre o dever heroico e o medo visceral de Aquiles (lembremos que Heitor era apenas um homem, enquanto Aquiles era um semi-deus). Conta-se que depois de a cólera de Aquiles ter sido inflamada pela morte de Pátroclo, o guerreiro argivo lançou‑se em perseguição implacável aos troianos, que, apavorados, buscaram refúgio atrás das muralhas. Foi nesse contexto que Heitor, liderando a fuga dos seus, deu‑se ao episódio célebre em que, três vezes, percorreu de carro toda a extensão dos muros que circundavam Troia, fugindo de Aquiles e adiando o duelo que sabia inevitável. Só após essa longa volta, instigado pelo ânimo guerreiro e pela pressão de seu próprio destino, e ainda iludido pelo artifício de Atena, que tomou a forma de seu irmão Deífobo para encorajá‑lo, Heitor parou de recuar e resolveu enfrentar o filho de Peleu. É nesse ponto decisivo que o herói troiano declara, com firmeza, sua disposição final de lutar até o fim:
“De ti, filho de Peleu, já não fugirei —
antes, três vezes rodeei a cidade de Príamo,
sem me atrever a ficar e lutar contigo.
Mas agora o espírito me incita a ficar firme,
quer eu te mate, quer seja morto por ti.”
(Trad. Frederico Lourenço)
A morte de Heitor, narrada com pathos e solenidade, é talvez o ponto mais pungente da Ilíada. A violência de Aquiles, que arrasta seu corpo ao redor das muralhas de Troia, acentua ainda mais a humanidade e a nobreza de Heitor, este, que pediu um pacto de respeito mútuo pelos corpos antes do combate. O desrespeito de Aquiles, contraposto ao pedido de clemência de Heitor, encerra a oposição entre o herói da cólera e o herói da virtude.
Em suma, Heitor é o herói que mais se aproxima de uma figura ética dentro da Ilíada. Ele age com sophrosýnē (moderação), com eúnomia (ordem), e com uma consciência aguda de suas responsabilidades como líder e como homem. Sua imagem permanece como um ideal heroico não apenas por sua bravura, mas sobretudo por sua humanidade, por ser ao meu ver, entre todos os heróis da Ilíada, o que mais tem a perder.
Assim sendo,
a figura de Heitor, tal como retratada por Homero, revela de forma contundente a essência da condição humana, ou seja, a consciência da derrota inevitável e, ainda assim, a decisão de enfrentar o destino com dignidade. Heitor sabe que não vencerá Aquiles, afinal seu inimigo é invencível, a vitória já é certa, mas mesmo com medo, ele escolhe lutar. Esse gesto o aproxima de todos nós. Afinal, também somos confrontados, em diferentes momentos da vida, com batalhas que sabemos não poder vencer, perdas anunciadas, despedidas dolorosas, fracassos inevitáveis. Ainda assim, resistimos.
A grande ironia da narrativa é que, no fim, tanto Heitor quanto Aquiles compartilham o mesmo destino, a morte. No entanto, suas motivações os distanciam profundamente, Aquiles luta pelo ódio, buscando a glória heroica, enquanto Heitor luta porque desistir não é uma opção aceitável para um herói, mesmo que esse herói seja profundamente humano. Ele não age por vaidade, mas por dever, por amor à sua cidade e à sua família. É exatamente aí que reside o elogio à humanidade por Homero, não se trata aqui da grandiosidade sobre-humana de Aquiles, mas na dignidade silenciosa de Heitor, que escolhe o enfrentamento mesmo sabendo que o fim é certo. A glória de Heitor não está na vitória, mas na sua bela humanidade, e é isso que o torna um herói virtuoso.
Referência:
HOMERO. Ilíada. Tradução, introdução e notas de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2017.
Obrigada por ter lido até aqui, caro leitor!
Até breve,
por Bia.
Eu amo tanto esse tema! Ansiosa pra ler.
Um dos momentos mais marcantes pra mim que mostram a humanidade e gentileza de Heitor e o momento que Helena se lamenta pela morte dele dizendo que perdeu o único amigo que tinha ali.