Odisseu e o diálogo interno com o coração
O herói homérico e o fulcro da sabedoria
Tchaikovsky - pas de deux 𝄞
Entre tantas jornadas que o mundo antigo narra, há a de um herói singular, cuja maior conquista não era a glória da guerra, mas o simples e profundo desejo de voltar para seu lar e sua família. Esse herói é Odisseu.
“Ulisses é o herói que luta para preservar sua memória. Diversos perigos que enfrenta (...) são uma alusão a esta questão. Daí ser ele o herói do nóstos, o herói do retorno. De nóstos nos vem "nostalgia", o desejo do regresso, não só físico (Ítaca), mas também psicológico. Este desejo é alimentado pelo não esquecimento, pela memória. Ligado a este aspecto está a questão da individualidade, que é a contrapartida de identidade. Em oposição à Ilíada, epopéia coletiva e guerreira, a Odisséia é a aventura de um herói só, o que pode ser lido já como a do indivíduo, ou melhor, a aventura do homem na lenta e difícil conquista de um estágio de consciência não mais totalmente mítico.”
Miriam Sutter
A REJEIÇÃO DO HEDONISMO: ODISSEU NA ILHA DE CALIPSO
Ao longo de sua odisseia, após enfrentar tempestades, monstros e perigos inomináveis, Odisseu encontrou um porto seguro na ilha de Ogígia, onde habitava uma linda ninfa chamada Calipso. Inicialmente, poder-se-ia imaginar que ali seu tormento finalmente cessaria: um refúgio idílico, onde a deusa o acolhe, oferece-lhe a si mesma, prazer e até mesmo a promessa da imortalidade. No entanto, Odisseu logo se vê prisioneiro não de grilhões ou muralhas, mas de um encantamento mais sutil e insidioso: a tentação do esquecimento, a dissolução de sua identidade no seio de uma eternidade sem Ítaca.
Calipso, cujo nome em grego (Kalyptô) significa "aquela que encobre, que oculta", simboliza precisamente esse risco: o apagamento da memória, a suspensão do destino, a renúncia ao passado em troca de uma permanência eterna em um presente indistinto. Durante sete anos, Odisseu habita Ogígia, desfrutando dos favores da ninfa, mas sua alma permanece inquieta. Ele, que sobreviveu à fúria de Posêidon, que desafiou Polifemo com astúcia, que resistiu ao canto das sereias amarrado ao mastro de seu navio, agora se vê subjugado não pela força, mas por uma felicidade sem propósito.
Vejamos bem, aparentemente, Odisseu parece estar na ilha dos sonhos de qualquer homem. Diante de uma bela deusa que lhe oferece o prazer e a imortalidade sem fim, por que então Odisseu não está feliz?
Seu sofrimento, que Homero descreve com pungente melancolia, manifesta-se na cena em que ele, dia após dia, senta-se à beira-mar, fitando o horizonte, chorando sua saudade de Ítaca. Essa tristeza não é apenas uma nostalgia pueril de sua pátria, mas a angústia existencial de um homem cujo sentido da vida está intimamente ligado ao retorno. Odisseu não é um simples viajante, ele é o nóstos personificado, aquele cujo destino é reencontrar o lar e reassumir seu lugar no mundo. Ítaca não é apenas um ponto no mapa, mas a expressão de sua identidade, seu vínculo com o passado e o testemunho de sua travessia.
“O mais caro objeto de meus desejos, juro-lhe, é esta vida de um povo em harmonia, quando nas casas se veem em longas filas os convivas sentados para ouvir o aedo (o costume queria que um aedo, um contador acompanhado por um instrumento musical, cantasse histórias acompanhando-se com uma cítara, costume que será praticado no tempo dos castelos com os nossos trovadores), quando nas mesas abundam o pão e as carnes e que, dirigindo-se à cratera (o recipiente onde colocavam o vinho puro antes de misturá-lo com água), o escanção vem oferecer e despejar nas taças. Esta, para mim, é a mais bela das vidas… nada é mais doce do que a pátria e os familiares; no exílio, de que serve a morada mais rica, entre estranhos e longe dos seus?” (Odisseia, Canto IX).
Mais do que um território físico, Ítaca configura-se como o centro gravitacional de sua subjetividade, o espaço onde sua identidade se encontra plenamente realizada. Longe de sua terra natal, Odisseu experimenta um processo de despersonalização, um esvaziamento ontológico que se reflete no seu sofrimento prolongado e na inquietação de sua alma.
A evocação da vida harmônica na pátria, onde os conhecidos se reúnem para ouvir o aedo, compartilhar o pão e o vinho e viver em comunhão, não é apenas um devaneio nostálgico, mas a expressão de um princípio filosófico essencial: o ser humano encontra sua plenitude na ordem, no pertencimento a um mundo estruturado por laços familiares e amigáveis. A pátria, nesse contexto, é a condição para que a existência possua significado, pois é nela que se encontram os elementos constitutivos da identidade.
Longe de Ítaca, Odisseu não é mais o rei, o marido de Penélope, o pai de Telêmaco, o filho de Laertes, ele se reduz a um errante sem nome, um náufrago condenado a oscilar entre o esquecimento e a luta pela lembrança de si mesmo, seria, isso, uma espécie de morte para o herói. Esse processo de despersonalização atinge seu ápice na ilha de Calipso, onde, apesar de ser oferecida a ele a mais bela das mulheres, além da imortalidade, ele não pode se reconhecer naquele espaço, pois a eternidade sem Ítaca não é uma dádiva, mas uma condenação à perda de si.
A identidade de Odisseu não pode ser dissociada do nóstos, o retorno à pátria. Diferente de Aquiles, cuja glória (kleos) é conquistada no campo de batalha e ecoa pela eternidade, Odisseu não busca a fama imortal, mas sim a reintegração ao seu mundo, ao microcosmo onde ele desempenha papéis fundamentais que o definem. Ser rei de Ítaca significa exercer a soberania sobre um espaço legítimo, ser esposo de Penélope significa reafirmar um amor construído sobre a resistência e a fidelidade, ser pai de Telêmaco significa garantir a continuidade da linhagem, ser filho de Laertes significa permanecer inserido na tradição dos antepassados. Esté é quem é Odisseu.
O fundamento da sabedoria de Odisseu reside, assim, no reconhecimento dos limites da existência e na valorização da prudência (phronesis). Ele encarna a inteligência estratégica (métis), mas não apenas no sentido da sagacidade tática. Sua astúcia está a serviço de um ideal superior, de um equilíbrio entre o desejo e a razão. Se Aquiles personifica o ímpeto heroico que desafia o destino, Odisseu simboliza o homem que compreende a necessidade da moderação, que não se deixa arrastar pelos excessos e que sabe que o verdadeiro triunfo não está na busca desenfreada da glória ou do prazer, mas na capacidade de permanecer fiel a si e àqueles a quem se ama.
Dessa forma, Odisseu evidencia que a sabedoria não consiste na negação do prazer em si, mas na recusa de sua tirania. O hedonismo irrestrito, que promete felicidade sem consequência, é para ele uma forma de esquecimento e alienação. A verdadeira realização não está na gratificação instantânea, mas na conquista paulatina daquilo que tem valor intrínseco: a pátria, os laços familiares, a continuidade da tradição. Seu caminho é o do equilíbrio, do comedimento e da resistência, demonstrando que a grandeza do homem não está em evitar o sofrimento, mas em saber suportá-lo com dignidade, sem perder de vista aquilo que lhe dá sentido.
O RETORNO AO LAR
O dia em Ítaca não ia ser mais o mesmo. O rei estava voltando. Já perto, o sal das marés permeavam os cabelos de Odisseu e seu coração, esse músculo provado por mil tormentas, pulsava num ritmo acelerado, mas firme. Após longos 20 anos, pisava finalmente o solo de sua pátria, mas não como rei, e sim como um mendigo disfarçado.
Cauteloso, avançava pelas veredas de sua ilha, sob o olhar atento de Eumeu, o porcineiro fiel, cujas palavras eram tingidas de saudade e esperança. Mas Ulisses silenciava. Nada ainda deveria ser revelado. O tempo da paciência, essa virtude amarga, ainda se estendia sobre ele como uma sombra.
Quando, enfim, seus pés resvalaram sobre as pedras do grande salão, o espetáculo da afronta revelou-se por inteiro. Homens jovens, fartos de vinho, regalavam-se como se a fartura fosse eterna. As serviçais se jogavam na devassidão do ambiente. Seus risos enchiam o espaço antes sagrado, antes familiar, e Penélope, sentada na sombra de sua própria tristeza, parecia o espectro de uma promessa desfeita.
Seu filho Telêmaco, antes um pequeno bebê, se encontrava já como homem, passava entre aqueles devassos como um lobo entre cães, atento, mas sem força para despedaçá-los sozinho. E Odisseu, ao ver aquilo, nada fez além de conter o próprio peito, onde o coração rugia de forma intepestuosa.
“Batendo no peito, Odisseu censurou o seu coração:
aguenta, coração, que já sofrestes bem pior”. (Odisséia).
O herói comedido
Vemos Aquiles como um guerreiro insigne da Ilíada, aquele que encarna a força desmedida que beira a própria hybris, o ímpeto irreprimível, destreza e inflexibilidade, atributos que o tornam um semideus temível no campo de batalha. Sua fúria (mênis), desde os primeiros versos da epopeia, determina o curso de sua existência, conduzindo-o a feitos grandiosos, mas também ao caminho de uma espécie de fim trágico, embora isso seja questionável, uma vez que o herói homérico é um ser que, independentemente de seu fim, revela sempre uma bela morte guerreira.
Assim, Aquiles não pondera sobre as consequências de seus atos, age movido por um senso de justiça visceral e por uma sede de glória que transcende a própria vida. Seu heroísmo, assim,é permeado pela glória, mas carrega um pouco de tragicidade, sobretudo quando o observamos sacrificar a própria vida pela imortalidade do nome, sendo um herói que se consome na própria chama.
Por outro lado, vemos em Odisseu um contraponto. Ele surge na Odisseia como paradigma da inteligência estratégica e da prudência (métis), não por acaso é guiado e protegido pela deusa da sabedoria, Atena. Diferentemente do pelida, que age movido por paixões intensas e por um código de honra inflexível, o rei de Ítaca calcula suas ações, pesa consequências e adapta-se às circunstâncias com uma argúcia singular. O heroísmo de Odisseu não é forjado meramente pela bravura, mas sobretudo pela engenhosidade e pela resistência, que lhe permitem sobrepujar adversidades tanto bélicas quanto espirituais. É o que vemos, sobretudo, quando o herói retorna a Ítaca e encontra seu palácio tomado pelos pretendentes de Penélope, que esbanjam seus recursos e desonram sua casa. Diferente de um ataque impulsivo e frontal, como Aquiles faria, Odisseu emprega a astúcia e a paciência para articular sua vingança.
Disfarçado de mendigo, ele infiltra-se entre os usurpadores, observa seus comportamentos e reconhece os aliados fiéis, como seu filho Telêmaco, seu velho servo Eumeu e a ama Euricleia. Esse período de dissimulação demonstra sua capacidade de autocontrole e estratégia: ele não se deixa levar pelo ímpeto da ira, mas aguarda o momento oportuno para agir com máxima eficácia.
O auge dessa engenhosidade ocorre quando Penélope propõe o desafio do arco, no qual os pretendentes devem encordoar a arma de Odisseu e disparar uma flecha através de doze machados alinhados, quem fizesse tal feito, assim, casaria com ela e poderia reinar sobre o trono. Sabendo que nenhum dos pretendentes conseguiria realizar tal feito, Odisseu se revela no instante preciso, empunha o arco e, com frieza e precisão, elimina todos os pretendentes um a um, contando com a ajuda de Telêmaco e dos poucos servos leais.
Essa cena ilustra de forma exemplar a diferença fundamental entre Odisseu e heróis como Aquiles: seu heroísmo não está na força bruta ou na busca por glória imediata, mas na paciência, na inteligência e no domínio das circunstâncias. Se Aquiles encarna a mênis (força física e ímpeto desmedido), Odisseu personifica a boa medida, a inteligência estratégica que permite não apenas vencer batalhas, mas sobreviver a elas e restaurar a ordem.
“Aguenta, coração, que já sofrestes bem pior”.
Odisseu ao proferir a máxima “Aguenta, coração, que já sofrestes bem pior”, sintetiza em poucas palavras o ethos de sua jornada: a resiliência diante das adversidades, a inteligência estratégica no enfrentamento dos desafios e a perseverança que define sua trajetória. Na Odisseia, Homero constrói a figura de Odisseu como um paradigma do herói não apenas guerreiro, mas também navegante do destino, aquele que, submetido a infortúnios e provações incessantes, responde com astúcia, resistência e um autocontrole que o distingue dos demais heróis da épica grega.
Essa fala encontra ressonância na estrutura mesma da Odisseia, pois a narrativa de Odisseu é marcada por um longo exílio, repleto de obstáculos físicos, espirituais e morais. Diferentemente da Ilíada, em que a glória heroica (kleos) é conquistada pelo destemor no campo de batalha, a Odisseia apresenta um herói cujo triunfo se dá pela superação das vicissitudes do mundo e pela paciência diante da imprevisibilidade do destino (moira). Odisseu não apenas luta contra inimigos tangíveis: monstros, tempestades e deuses vingativos, mas também contra os perigos da sedução, da ilusão e do esquecimento, que ameaçam dissolver sua identidade e desviá-lo de seu objetivo supremo: o retorno ao lar.
Contudo, Lar, para Odisseu, não era um castelo erguido em pedra, mas o calor da família e o chão do seu reino, esse era o seu verdadeiro lar.
“A aventura mais real de todas, e acessível a todo bolso, é ficar em casa. Que admirável é contemplar um herói tão esplendoroso, tão clássico e tão genial como Ulisses, que não desejava outra coisa que voltar à sua mulher e ao seu lar. Não conheço melhor odisseia.”
G. K. Chesterton
Caro leitor, obrigada por ter lido até aqui. Que a sabedoria de Odisseu possa te inspirar!



eu estava tentando me distanciar das narrativas épicas gregas e do latim antigo, vim numa batida de Divida Comédia - Petrarca - Metamorfoses de Ovídio. Ainda acho que preciso dar um pouco de textos escritos em português puro para minha cabeça mas acabei de colocar a Odisseia na minha lista hahah
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